Introdução à iconografia paulina
Paulo é talvez a personagem bíblica que melhor se revela em seus escritos e que, por isso mesmo, facilmente suscita nos cristãos empatia, admiração e desejo de o imitar no seu amor a Cristo e á Igreja e no seu ardor apostólico. A interpretação dos seus escritos suscitou ao longo da história vários movimentos de renovação da vida cristã e de admirável e fecunda ação missionária e também lutas apaixonadas que rasgaram o tecido eclesial. Convido-vos a fazer uma incursão, certamente breve e incompleta, na iconografia paulina hoje conhecida e acessível. Ele falou-nos de Cristo e de si mesmo com palavras. A Igreja fala de Cristo e dos santos com palavras e também com imagens.
Será oportuno lembrar as três funções principais da imagem na iconografia cristã: uma função simbólica, uma função narrativa e uma função cultual. Sem problemas de maior, a Igreja dos primeiros séculos foi produzindo e utilizando imagens simbólicas e narrativas. Mas quando começou a generalizar-se o uso de imagens para veneração pública e privada, eclodiu a grande crise iconoclasta, particularmente aguda e sangrenta no império bizantino. O sétimo concílio ecuménico, celebrado em Nicéia no ano de 787, abriu caminho para a solução desta crise, que viria a terminar apenas em 843 com o triunfo da ortodoxia, que confirmou como sendo cristãmente correta a veneração das imagens de Cristo, da Virgem Maria e dos Santos. (...)
O percurso da iconografia paulina, iniciado já no século IV, é como uma árvore fecunda que em cada século produziu frutos admiráveis, obras notabilíssimas quer pela sua densidade espiritual e teológica quer pela qualidade artística, tanto no Oriente como no Ocidente.
Paulo e Pedro
Desde o princípio, Pedro e Paulo foram reconhecidos pelos cristãos como os dois pilares da catolicidade da Igreja e por isso não é de estranhar que muitas vezes sejam representados juntos. Aliás, já desde o século III, a Igreja celebra a sua memória no mesmo dia, em 29 de junho.
São Pedro e São Paulo (1587-1592), El Greco
Uma das mais antigas representações de São Paulo, datada de 348, conserva-se nas catacumbas de santa Domitila, em Roma: de rosto comprido, testa ampla e calva, nariz aquilino e barba recortada, ela deu o modelo que os artistas seguiram até hoje, sobretudo na Igreja Ortodoxa. É assim que nos aparece também num fresco do século IV nas catacumbas de São Pedro e São Marcelino, ladeando Cristo com São Pedro. Esta representação que recebeu o nome traditio legis (Cristo entrega a lei nova a São Pedro na presença de São Paulo) aparece esculpida várias vezes em sarcófagos paleocristãos dos séculos IV e V.
Em Ravena, no século VI, no batistério dos arianos, vemos Pedro e Paulo representados nos mosaicos da cúpula, aliás, com os outros apóstolos, ao lado da hetimasia, o trono vazio de Cristo onde, em vez da figura do Senhor, cuja segunda vinda a Igreja espera, está colocada uma cruz preciosa sobre uma almofada. Também em Ravena, na capela do arcebispado, Paulo e Pedro são vigorosamente representados em admiráveis medalhões de mosaico.
São Pedro e São Paulo (1570), Gaspar Dias. Museu Nacional de Arte Antiga
Pela sua pregação e pelo seu ministério eclesial, Pedro e Paulo são os apóstolos que nos recebem na Igreja e nos abrem as portas do céu. Por isso mesmo são representados muitas vezes no nártex das igreja, à direita e à esquerda da porta principal. É assim que os vemos, por exemplo, na Igreja de São Salvador de Chora, em Constantinopla, e em muitas catedrais românicas e góticas da Europa (Évora, batalha, etc.).
Outra representação de Pedro e Paulo, em que eles se beijam ou abraçam, e que é no Oriente o ícone próprio da sua solenidade em 29 de junho, tem o nome de Concordia Apostolorum. Em Roma podemos ver um baixo-relevo com este tema, numa rua próxima da basílica de São Paulo, no lugar onde, segundo a tradição, os dois apóstolos se encontraram.
C. 1282-1295, Mestre grego
Nas nossas igrejas, sobretudo nas dedicadas a São Pedro, quase sempre aparece também São Paulo porque, no dizer do povo, “não há Pedro sem Paulo”. Curiosamente, um relevo em pedra do século V mostra-nos os rostos de Pedro e Paulo, não lado a lado, mas frente a frente. Talvez não tenha sido esse o objetivo do autor, mas este enfrentamento lembra-nos o incidente de Antioquia, que Paulo refere na Carta aos Gálatas com estas palavras: “quando Cefas veio a Antioquia eu enfrentei-o abertamente porque ele se tornara digno de censura... eu disse a Pedro diante de todos: se tu, sendo judeu, vives à maneira dos gentios e não dos judeus, porque forças os gentios a viverem como judeus?” (Gal 2, 11-14). Trata-se de uma interpretação minha, talvez abusiva, porque a iconografia sempre nos mostra Pedro e Paulo em perfeita concórdia, lado a lado, como as duas colunas que sustentam o edifício da Igreja. As diferenças que caracterizam as suas pessoas e o seu ministério são complementares porque agiram movidos pelo mesmo Espírito. Além das representações já referidas, acrescentemos ainda as da Basílica de Santa Praxedes, em Roma (séc. IX). Também nas iconostases das igrejas bizantinas Pedro e Paulo sempre aparecem à frente dos outros apóstolos.
Paulo e os Doze
Séc. IX
Lemos nos Atos dos Apóstolos a dificuldade que Paulo sentiu depois da sua conversão, em ser acolhido entre os discípulos de Jesus porque tinham medo dele, e ao longo das suas cartas vemos como reclama vigorosamente para si o nome de apóstolo, embora não tenha convivido com Jesus nem tenha pertencido ao número dos doze. Na iconografia, Paulo não encontra essa dificuldade. Vemo-lo desde o princípio representado juntamente com Pedro, à frente dos apóstolos, como por exemplo no ícone chamado «Sinaxe dos Apóstolos». Aliás, nos ícones da Ascensão e do Pentecostes e em todos os outros em que aparece o grupo dos doze, sempre vemos Paulo incluído. Toda a gente sabe que Paulo não esteve na Ascensão e no Pentecostes, mas a iconografia oriental, nada prisioneira de historicismos, entendeu que o grupo dos apóstolos não é completo sem Paulo, e prefere assim excluir um dos outros apenas necessários para perfazer o número doze, mas que não tem o peso e a importãncia do doutor das gentes. No ícone da Dormição da Virgem Maria, que é uma bela catequese sobre a morte do cristão, os doze apóstolos rodeiam o corpo de Maria que Pedro incensa. E, frente a Pedro, é sempre representado Paulo, inclinado em profunda oração.
Conversão de São Paulo (1542-1545), Michelangelo
Outro ícone em que vemos Paulo incluído no grupo dos doze é o do «Juízo Final», pintado em muitas igrejas bizantinas sobre a porta principal, dentro da igreja, de modo que ao saírem da celebração e ao regressarem á vida quotidiana os fiéis levem gravada a certeza de que os seus atos serão julgados por Cristo. Lá aparecem os doze, com Pedro e Paulo à frente, sentados em tronos com Cristo para julgar as nações, de acordo com a promessa do Senhor (Mt 19, 28). Em muitos destes ícones Paulo aparece também mostrando a lei aos judeus e aos pagãos e apontando para Cristo, que é o pleno cumprimento da lei e o único Salvador.
Imagens da vida de Paulo
A iconografia cristã tem, desde o princípio, uma função narrativa. No dizer de São Gregório Magno, “o que um livro proporciona ao que lê, isso oferece uma pintura aos analfabetos que a contemplam, pois nela, mesmo os ignorantes vêem como têm de comportar-se, nela lêem os que não têm letras” (Carta a Sereno). Não é que a imagem dispense de escutar, porque a fé nasce não de ver imagens mas de escutar a pregação (Cf. Rom 10, 17). a imagem é suporte da narração, condensa a catequese e prolonga no tempo a pregação. A imagem é uma haggadah visual das mirabilia Dei. Porque conduz à imitação e dá àquele que a escuta e a reconta uma identidade, a narração, parte integrante da catequese, é fundamenta para levar aquele que já recebeu o Evangelho na sua mente a pô-lo em prática na sua maneira de viver.
São Paulo à secretária (1629), Rembrandt
Os humildes começos da haggaddah visual paulina encontramo-los já em relevos de sarcófagos dos primeiros séculos, representando quase sempre o seu martírio; floresce depois ao longo da Idade Média em miniaturas, frescos e mosaicos e desenvolve-se plenamente na grande pintura europeia nos séculos XV a XVIII. As cenas mais frequentemente representadas são a conversão e o martírio, e também o batismo e a pregação, sobretudo no Areópago de Atenas, Paulo arrebatado ao céu e outros episódios da sua vida, relatados no livro dos Atos dos Apóstolos. São dignos de especial menção os mosaicos da catedral de Monreale, na Sicília. No século XVI, Rafael pintou, nas loggias do Vaticano, várias cenas dos Atos dos Apóstolos, em que aparece Paulo diversas vezes. O último fresco pintado por Miguel Ângelo na Capela Paulina do Vaticano é precisamente a conversão de São Paulo. No século XVII, Caravaggio pintou duas vezes esse mesmo episódio. De Rembrandt, no mesmo século, conhecemos quatro pinturas de temática paulina: Paulo na prisão, Paulo meditando e autorretrato como São Paulo. Poussin pintou Paulo arrebatado aos céus... Seria tarefa muito difícil enumerar as obras de temática paulina realizadas na Europa ao longo dos séculos, sobretudo na época barroca. Mas lembremos ainda os painéis de azulejos que revestem muitas das nossas igrejas. É verdade que em Portugal não há muitas que o tenham por orago (São Paulo não é propriamente um santo muito popular), mas como vai sempre ao lado de Pedro tem a sua parte junto dele, também na iconografia.
Vasco Fernandes, com Gaspar Vaz (1530). Museu de Grão Vasco, Viseu
Imagens para a liturgia
As imagens de São Paulo para o culto apresentam-no quase sempre de pé, com o livro das epístolas, tanto no Oriente como no Ocidente, e também com uma espada, sobretudo na Igreja latina. A espada alude ao seu martírio, pois foi decapitado, mas também é símbolo da palavra divina por ele anunciada, como diz a Carta aos Hebreus: “a palavra de Deus é viva e eficaz, mais penetrante que uma espada de dois gumes” (Hb 4, 12). Também na Carta aos Efésios, descrevendo as armas da luz que o cristão deve usar nos combates da vida, Paulo refere a “espada do Espírito que é a palavra de Deus” (Ef 6, 17). Falar de Paulo é falar do pregador, do semeador da palavra de Cristo que suscita a fé. Mas é falar também do sábio que interioriza a palavra antes de a proclamar. Assim o vemos representado no átrio da sua basílica, em Roma, e em milhares de imagens esculpidas e pintadas em igrejas de todo o mundo. Lembremos por exemplo a vigorosa tábua saída da oficina de Nuno Gonçalves (séc. XV) e conservada no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa. Entre nós são ainda notáveis algumas do século XV e XVI, góticas e renascentistas, quase sempre de pedra calcária, ás vezes policromada, da região de Coimbra, e as barrocas do século XVII e XVIII, de madeira entalhada ou simplesmente pintada. Se as primeiras são mais contidas, frontais e humanas, as barrocas expressam, na sua teatralidade, o dinamismo e as tensões deste homem possuído pelo Espírito de Deus que sente a urgência do anúncio do Evangelho e vive intensamente a solicitude pastoral por todas as igrejas.
As imagens de São Paulo para o culto apresentam-no quase sempre de pé, com o livro das epístolas, tanto no Oriente como no Ocidente, e também com uma espada, sobretudo na Igreja latina. A espada alude ao seu martírio, pois foi decapitado, mas também é símbolo da palavra divina por ele anunciada, como diz a Carta aos Hebreus: “a palavra de Deus é viva e eficaz, mais penetrante que uma espada de dois gumes” (Hb 4, 12). Também na Carta aos Efésios, descrevendo as armas da luz que o cristão deve usar nos combates da vida, Paulo refere a “espada do Espírito que é a palavra de Deus” (Ef 6, 17). Falar de Paulo é falar do pregador, do semeador da palavra de Cristo que suscita a fé. Mas é falar também do sábio que interioriza a palavra antes de a proclamar. Assim o vemos representado no átrio da sua basílica, em Roma, e em milhares de imagens esculpidas e pintadas em igrejas de todo o mundo. Lembremos por exemplo a vigorosa tábua saída da oficina de Nuno Gonçalves (séc. XV) e conservada no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa. Entre nós são ainda notáveis algumas do século XV e XVI, góticas e renascentistas, quase sempre de pedra calcária, ás vezes policromada, da região de Coimbra, e as barrocas do século XVII e XVIII, de madeira entalhada ou simplesmente pintada. Se as primeiras são mais contidas, frontais e humanas, as barrocas expressam, na sua teatralidade, o dinamismo e as tensões deste homem possuído pelo Espírito de Deus que sente a urgência do anúncio do Evangelho e vive intensamente a solicitude pastoral por todas as igrejas.
2.ª metade do séc. XIII, Roma
E atualmente?
De entre as muitas realizações, certamente desiguais em qualidade artística e densidade espiritual, destaco a título de exemplo: na Capela Redemptoris Mater, do Vaticano, Marko Rupnik representou São Paulo incluído no grupo dos Doze no Pentecostes, e o seu martírio; um vitral de Sieger Köder na Igreja do Espírito Santo, de Ellwangen, mostra-nos Paulo escrevendo aos Coríntios, e num retábulo do altar da Igreja de Wasseralfinger, a sua conversão.
De entre as muitas realizações, certamente desiguais em qualidade artística e densidade espiritual, destaco a título de exemplo: na Capela Redemptoris Mater, do Vaticano, Marko Rupnik representou São Paulo incluído no grupo dos Doze no Pentecostes, e o seu martírio; um vitral de Sieger Köder na Igreja do Espírito Santo, de Ellwangen, mostra-nos Paulo escrevendo aos Coríntios, e num retábulo do altar da Igreja de Wasseralfinger, a sua conversão.
Ao fim de dois mil anos, muito se disse já, por imagens, acerca de Paulo. Estará tudo dito? É claro que não. Paulo continua hoje a falar e a ser escutado, e em cada época e em cada circunstância o tesouro paulino continuará a revelar novos aspetos da insondável riqueza de Cristo. E não esqueçamos de ver de cada geração, de cada cultura, de cada artista.
Nicolas Poussin (1643)
Neste momento em que a Igreja é chamada a um novo impulso evangelizador, conhecer melhor Paulo de tarso através dos seus escritos e da sua iconografia será para nós, certamente, uma ajuda preciosa para nos tornarmos seus imitadores, como ele o foi de Cristo (cf. 1 Cor 11, 1).
Cón. João Marcos
Diretor espiritual do Seminário dos Olivais, Lisboa
In Novellae Olivarum, Novembro 2008
As imagens que acompanham este artigo não correspondem que são apresentadas no texto original
23.03.09
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