domingo, 30 de maio de 2010

Um Apontamento Musical sobre S. Paulo

«Uma das primeiras alusões à prática musical que encontramos no Novo Testamento envolve precisamente a figura de Paulo. Trata-se de uma passagem dos Actos dos Apóstolos, onde se conta o episódio da prisão de Paulo e Silas depois de uns desacatos provocados pela cura de um possesso em Filipos: “pela meia-noite, Paulo e Silas, em oração, cantavam os louvores de Deus; os prisioneiros escutavam-nos…” (Act 16, 25). Não sabemos ao certo de que género de cânticos se tratava, mas provavelmente seriam Salmos, cantados de tal modo que conseguiam despertar a curiosidade dos companheiros de prisão, embora suficientemente discretos para permitirem que o carcereiro tenha adormecido ao ponto de só acordar com o terramoto que acabou por libertar os prisioneiros. Será este discreto canto a levar, mais tarde, o Apóstolo a exortar os fiéis destinatários das suas Cartas: “falai uns aos outros com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor em vosso coração” (Ef 5, 19) e “entoem vossos corações salmos, hinos e cânticos espirituais” (Col 3, 16). Este apelo ao canto “em vossos corações” estará provavelmente em contraste com a prática musical grega caracterizada por alguma estridência, nomeadamente na forma de entoação dos modos de Lídio e Jónio já causadores de algumas preocupações no próprio Platão, mas sobretudo nos Padres da Igreja, nomeadamente em Santo Inácio de Antioquia, que exortava os cristãos a tomarem o “tom de Deus”, ou então procurar que “não suceda que enquanto a boca está dizendo as palavras, a mente ande vagueando por qualquer lado; para que a língua seja escutada pela alma”, como comentará, mais tarde, S. João Crisóstomo. […] Relativamente à música instrumental, não podemos dizer que Paulo se mostre indiferente ao mundo circundante; as poucas alusões dos seus textos mostram-nos um particular conhecimento dos efeitos da música, iniciando mesmo um estilo alegórico que haveria de ser particularmente desenvolvido pelos escritores eclesiásticos dos primeiros séculos. No famoso Hino à Caridade da Primeira Carta aos Coríntios, Paulo afirma: “Ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos,se não tiver caridade, sou como bronze que ressoa ou um címbalo que retine” (1 Cor 13, 1). A palavra “bronze”, χαλχος deverá referir-se ao instrumento chamado “gong” ou mais precisamente ao “tam-tam”, instrumentos cujo som se prolonga no tempo e com profundidade que oscila entre o solene e o aterrador; por sua vez, o címbalo, χυμβαλον, no grego, é um instrumento já conhecido no mundo judaico (usado em pares percutindo-se em contra o outro, designados por selselîm), muito utilizados no pontuação rítmica, e conhecidos também entre nós por “címbalos” ou “pratos”. Estes instrumentos, “com a sua sonoridade brilhante e estridente martelavam o ritmo de cânticos e procissões”, eram muito utilizados no judaísmo e vêm referidos em diversas passagens da Bíblia, particularmente no elenco instrumental do Salmo 150, mas são apontados por Paulo por causa da sua sonoridade “pobre”, indefinida, como a pobreza de linguagem daqueles que não têm caridade: capazes de chamar a atenção mais do que outros não conseguem transmitir qualquer mensagem. E Paulo continua o seu raciocínio fazendo agora apelo a três instrumentos melódicos – a Flauta, a Trompete e a Cítara – ao afirmar em 1 Cor 14, 6-7: “Suponde agora, irmãos, que eu vá ter convosco falando em línguas: como vos serei útil se a minha palavra não vos levar nem revelação, nem ciência, nem profecia, nem ensinamento? O mesmo se dá com os instrumentos musicais como a flauta ou a cítara: se não emitem sons distintos, como identificar a flauta ou a cítara?”»


In: BARBOSA Jorge Alves, «Louvai o Senhor em vossos corações…» S. Paulo e a música, Revista Brotéria 170, 2010, páginas 44 a 47.

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